Levantamento recente indica que o Brasil possui 330.000 dentistas, correspondendo a 20% dos profissionais de todo o mundo (1). Segundo a Organização Mundial de Saúde, a proporção ideal profissional-habitante seria de 1/1.500, no entanto, somente no estado de São Paulo, por exemplo, a proporção alcança 1/360. O aumento no número de faculdades de Odontologia, portanto, de mais profissionais no mercado de trabalho está inserido em um conjunto de mudanças sociais, econômicas e culturais da nossa sociedade.
A partir de uma maior oferta de serviços, um aumento na concorrência, com o cidadão mais consciente dos seus direitos como consumidor, amparado pela legislação vigente e assistido por profissionais do Direito especialistas na área de Direito Médico são particularidades que justificam o crescimento de ações judiciais de responsabilidade civil profissional.
Na Odontologia, em dois estudos nacionais (2,3), abrangendo todos os Tribunais de Justiça do país, comprovou-se que, entre os anos de 2000 e 2011, houve um aumento de mais de 380% no número de jurisprudências relacionadas a processos de responsabilidade civil do cirurgião-dentista. Mesmo em outros países, como na Austrália, uma pesquisa (4) apontou que, entre 14 profissões da área de saúde, os dentistas alcançaram o maior índice de queixas de pacientes: 56.9 por 1.000. Esta elevação nas demandas judiciais contra dentistas foi assinalado também em artigo publicado (5) com base em dados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) que possui um Departamento Médico Judiciário (DMJ) onde são realizadas perícias judiciais cíveis amparadas pela assistência judiciária gratuita (AJG). Para melhor compreensão, cumpre esclarecer que o DMJ-TJRS possui peritos oficiais (médicos, dentistas) que realizam perícias da área cível, envolvendo processos de pedidos de reparação de danos (indenização) por acidente de trânsito, por trauma (acidente/agressão) ou por alegado erro médico/odontológico. Neste estudo (5), encontramos que, entre os anos de 2010 e 2013, houve o ingresso de 182 processos judiciais no DMJ relacionados à Odontologia; destes, 53 diziam respeito à responsabilidade civil do dentista, portanto representavam 29,1% do total; os demais eram sobre acidentes de trânsito e traumas diversos. Comparando-se com igual período, de 2014 a 2017, onde houve o ingresso de 186 processos solicitando perícia, 86 destes eram referentes à responsabilidade civil profissional, ou seja, 46,2% do total. Portanto, dentro de uma demanda processual total similar nos dois períodos (182/186), houve um aumento substancial de cerca de 62% dos processos judiciais contra cirurgiões-dentistas. Nos últimos dois anos (2018-2019), as demandas de solicitação de perícia odontológica no DMJ do TJRS, por alegado erro, continuaram em elevação e representaram 68,7% do total de ingressos nestes anos.
Assim, constatamos que o Poder Judiciário cada vez mais é solicitado a decidir sobre questões que envolvem pedidos de reparação de danos por erro odontológico e o panorama social e econômico da profissão odontológica indica que estes números continuarão crescendo. Os operadores do Direito há muito tempo já perceberam esta mudança nas relações entre profissional da saúde-consumidor e buscaram se especializar no atendimento destas questões que requerem, além de um conhecimento jurídico profundo sobre o tema, um trato diferenciado com o seu cliente (profissional/paciente), um outro olhar, pois diz respeito ao bem que nos é mais caro: a saúde, o bem-estar.
Quando o consumidor entra com uma ação indenizatória, alegando erro odontológico, surge a necessidade de apresentação de provas e a prova de maior relevância em um processo desta natureza, segundo pesquisa, é o prontuário odontológico (6). No entanto, para a melhor compreensão dos procedimentos técnicos descritos em um prontuário se faz importante a figura do cirurgião-dentista como assistente técnico da autora e/ou do requerido e, da mesma forma, o dentista perito judicial na função de auxiliar do juiz. Do trabalho desenvolvido pelo assistente técnico e pelo perito se produz a prova técnica pericial.
A formação do assistente técnico/ perito judicial em Odontologia Legal é de suma importância, pois não basta o conhecimento técnico sobre as várias áreas odontológicas postas em discussão (cirurgia, endodontia, implantodontia...), mas é necessário que as partes sejam assistidas por um profissional que faça a leitura adequada dos procedimentos descritos no prontuário odontológico sob a ótica dos aspectos de culpa e do nexo causal e tenha conhecimento das questões relacionadas à deontologia e diceologia odontológica. Assim, relacionando Direito-Odontologia, a melhor estratégia poderá ser disponibilizada às partes quando da atuação como assistente técnico e, sendo perito judicial, os mesmos conhecimentos citados serão usados para esclarecer ao magistrado, questões técnicas à luz do Direito. Portanto, assistente técnico e perito, especialistas em Odontologia Legal, estão habilitados a contribuir de maneira relevante na produção da prova pericial que embasará a decisão do magistrado com a importância assim expressa em trecho extraído de acórdão:
"A conclusão pericial conforta a solução de improcedência da ação.”
(TJRS – 2014 Apelação 0387627-71.2014.8.21.7000 Relator: Des. Miguel Ângelo da Silva)
Denise Bolten Lucion Loreto
Cirurgiã-dentista CRO-RS 7618
Especialista em Odontologia Legal
Perita oficial do TJRS
Referências bibliográficas:
1. www.cfo.org.br
2. Paula FJ, Motta MV, Bersácola RN, Muñoz DR, Silva M. Panorama das ações de responsabilidade civil contra o odontólogo nos tribunais do Brasil. Rev Paul Odontol. 2010; 32(4): 22-8.
3. Wanderley e Lima RB, Moreira VG, Cardoso AMR, Nunes RMR, Rabello PM. [Levantamento das jurisprudências de processos de responsabilidade civil contra cirurgiões-dentistas nos tribunais de justiça brasileiros.] R Bras Ciência Saúde. 2012; 16(1): 49-58. doi:10. 4034/RBCS.2012.16.01.08. Português.
4. Thomas LA, Tibble H, Too LS, Hopcraft MS, Bismark MM. Complaints about dental practitioners: an analysis of 6 years of complaints about dentists, dental prosthetists, oral health therapists, dental therapists and dental hygienists in Australia. Aust Dent J 2018;63:285–93.
5. Loreto DBL, Barros BAC, Rosa GC, Oliveira RN, Rosing CK, Fernandes MM. Analysis of Dental Case Reports in the Context of Court Decisions: Causal Nexus and Aspects of Fault. J Forensic Sci, November 2019, Vol. 64 No 6. American Academy of Forensic Science 2019.
doi: 10.1111/155-4029.14089
6. Zanin AA, Strapasson RAP, Melani RFH. [Levantamento jurisprudencial: provas em processo de responsabilidade civil odontológica.] Rev Assoc Paul CirDent. 2015; 69(2): 120-7. Português.