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Prescrição forçada de fármacos. Como o médico pode se proteger juridicamente da coação do paciente?

Prescrição forçada de fármacos. Como o médico pode se proteger juridicamente da coação do paciente?
Nicole Carneiro
Jun. 30 - 6 min read
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O atual cenário pandêmico vivido pelo país trouxe para os profissionais da saúde uma nova roupagem acerca de dilemas já existentes na atuação médica. A diferença que agora se apresenta é que, juntamente com a magnitude implacável deste vírus, vivencia-se também um alastramento de informações nem sempre verdadeiras e que se tornaram capazes de definir a métrica de muitos comportamentos humanos.

De uma forma quase que geral, os pacientes - que de fatos são os verdadeiros gestores das escolhas relacionadas à sua saúde-, passaram a se comportar de forma excessivamente impositiva após essa crise mundial, principalmente quando a problemática gira em torno da prescrição ou não da Cloroquina e Hidroxicloroquina.

Há uma verdadeira atmosfera de coação e pressão na atuação dos médicos que lidam diretamente com o combate ao coronavírus (SARS-CoV-2). Compreensível que o profissional se sinta acuado, temeroso e angustiado com a possibilidade de ser vítima de uma ação judicial ou processo ético, por isso alguns acabam cedendo à prescrição desses fármacos muitas vezes por que lhes falta o conhecimento e a segurança para agir conforme suas convicções e integridade profissional.

Dentro de uma perspectiva bioética de tomada de decisões a responsabilidade médica é de suma importância na medida em que se busca sempre a manutenção do equilíbrio entre as autonomias do paciente e a do médico. Sendo inevitável que, em casos em que seja impossível essa simetria, haja a intervenção do Poder Judiciário o qual desempenhará relevante, e, ao mesmo tempo, controvertida tarefa de realizar a equidade do caso concreto.

Diante do espaço fronteiriço entre a atuação médica e uma possível judicialização o questionamento que fica é de como invocar essa recusa de forma segura e, ainda, como será possível prevenir a desgastante campanha familiar pela prescrição forçada de drogas, como se isso fosse uma obrigação irrestrita do profissional.

Pois bem, o Código de ética Médica no seu Capítulo II - Direitos dos Médicos, assim dispõe:

"É direito do médico:

IX - Recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por Lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência".

 

Em 2019 foi editada a Resolução nº 2.232 (https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2019/2232), que estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente.

Além das supracitadas legislações, o profissional deve ter o pleno conhecimento das recomendações do Ministério da Saúde, resoluções da ANS e ANVISA, e ainda legislações federais pertinentes. Detentor dessas diretrizes, passa-se à anamnese criteriosa do paciente, levando em conta todas as determinações nelas dispostas, ainda que possam parecer contraditórias em determinados aspectos. Quanto mais fiel aos dispositivos das normativas mais respaldada será a atuação médicas.

As conclusões clínicas quanto ao diagnóstico, prognóstico, opções terapêuticas, riscos e benefícios, menção à literatura científica atual e relacionada ao estado clínico do enfermo devem fazer parte do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, tudo em linguagem decodificada para a total compreensão do leigo.

Caberá ao médico se certificar de que todas as informações foram compreendidas pelo doente e sempre que possível é importante coletar sua assinatura, pois esse documento poderá ser de grande valia em sua defesa, tendo em vista que cabe ao médico a comprovação de que o paciente estava munido de todo detalhamento de seu tratamento, principalmente quando se envolve medicação de uso experimental ou off label, que podem gerar efeitos adversos e não esperados.

É essa informação prestada com clareza que será a propulsora da liberdade de escolha do paciente e, caso a terapêutica proposta esteja dissonante à que pretende e deseja firmemente, o médico certamente estará apto a fazer o manejo da sua autonomia, seja renunciando ao acompanhamento, seja através de objeção de consciência.

Art. 36 do Código de ética Médica:

§ 1° Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou a seu representante legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que o suceder.

Uma postura precipitada do médico no afã de barrar as interferências excessivamente maléficas do paciente em sua atuação técnica pode configurar imprudência e negligência que certamente merecerão a tutela intervencionista do Judiciário, além de poder configurar infração de ordem ética por descumprimento à postulados deontológicos como o asseverado no art 35 do CEM:

 

Art. 35. Exagerar a gravidade do diagnóstico ou do prognóstico, complicar a terapêutica ou exceder-se no número de visitas, consultas ou quaisquer outros procedimentos médicos.

Acaso essa “coação” para que o médico aja conforme as escolhas exclusivas do paciente ultrapasse os limites da naturalidade esperada para a relação, levando-se em conta o contexto psicológico em que as famílias se encontram e o hostil ambiente hospitalar, e transmute-se para uma ameaça, calúnia ou difamação, o profissional pode registrar o ocorrido em uma delegacia de polícia, além de comunicar ao diretor clínico o inconveniente.

Não é custoso mencionar ainda que, todas as ocorrências e intercorrências, incluídas a coação e pressão efetivamente realizada para que o profissional medique o paciente com fármacos específicos, off label ou não, devem ser anotadas no prontuário clínico, pois além de obrigação é de fulcral importância probatória.

Assim, diante desse potencial conflito de interesses potencializados não somente pelo alastramento do vírus no país, mas também pela já enraizada cultura do litígio, o ideal na busca da melhor solução para o enfrentamento da enfermidade é a prudência. É essa cautela e a certeza de que não há universalidade de entendimentos, que deve ser a balizadora das condutas de todos os envolvidos no atendimento.

É fundamental, portanto, uma mudança de paradigma para fazer predominar condutas – conforme, preventiva de conflitos e sempre diligente na construção e fomentação de uma saudável relação dialógica entre os envolvidos, adequando os objetivos do cuidado e as expectativas da família e do paciente.

 


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