O tema do humanismo médico – ou da humanização da Medicina – não é algo novo, mas preocupação sempre presente nos acadêmicos que comentam acerca do equilíbrio que sempre se deu na Medicina, entre as duas facetas que a compõem: a Medicina como ciência, e a Medicina como arte . Os vertiginosos avanços científicos requereriam, para manter esse equilíbrio, uma ampliação do âmbito do humanismo, quer dizer, um humanismo que fosse proporcional ao progresso técnico. Quando essa atualização moderna do humanismo não acontece, o resultado são profissionais formados tecnicamente, mas com sérias deficiências humanas. Profissionais disformes, com hipertrofias científicas e atrofias humanísticas, que não são capazes de inspirar confiança ao paciente. Como resolver este dilema? Ou melhor: como resolvê-lo de modo sustentável e instalar um processo sólido de volta ao humanismo médico? Afinal, como formar este profissional do qual precisamos? Na verdade, a questão é vital, porque se trata de resgatar a essência do ser médico. Humanizar o médico é no fundo um contrassenso. O humanismo é inato à profissão médica. Um médico sem humanismo não será propriamente médico. Na melhor das hipóteses trabalhara como um mecânico de pessoas.
Toda a responsabilidade recai, assim, no processo de formação do médico. E aqui o desafio é enorme, porque não se trata de importar conceitos humanistas de outrora, num saudosismo estéril, abominando do progresso. Não se pode ser médico humanista, com um humanismo do século passado. Requer-se a construção de um novo humanismo médico que integre todas as dimensões da atuação médica em unidade harmônica, em sólida competência.
O pensador francês Gustave Thibon reúne um conjunto de ensaios num volume que intitula “O Equilíbrio e a Harmonia”. O equilíbrio é composição de forças contrárias, solução de compromisso, resultante de vetores que se anulam entre si. A harmonia é o encaixe perfeito das partes de um todo, em colaboração perfeita para uma mesma finalidade. E, citando Vitor Hugo, comenta: ‘Por cima do equilíbrio encontra-se a harmonia, por cima da balança encontra-se a harpa’.
É bem possível que as tentativas humanizantes na Medicina – especialmente na formação acadêmica dos futuros médicos – incida neste erro: uma busca do equilíbrio, ao invés de promover a harmonia. O equilíbrio da por suposto que a ciência moderna apoiada em evidências tem de ser temperada com atitudes humanistas, ou humanitárias. Assim escutar com carinho a história do paciente, sentir compaixão, e posturas análogas. Mesmo reconhecendo nesses modos um notável avanço sobre o descaso que diariamente contemplamos para com o paciente e a família, pode se entrever um equilíbrio frágil, de pouca consistência. Na prática continuaremos admitindo duas posturas que não se misturam, como o azeite e a água. Água clara das evidências e o azeite que conforte. Mas cada um com densidade própria, aplicados no seu tempo e no momento pertinente. Esta “esquizofrenia da atuação médica” é insustentável em si mesma, dura pouco, e quando o médico se canse prestará atenção a um aspecto em detrimento do outro.
A ciência médica, a Medicina de ponta, exige hoje um novo humanismo. É necessário instalar uma postura que saiba colocar no mesmo raciocino a função hepática e as sequelas neurológicas, com o sentido da vida as transaminases e a albumina combinadas com a humilhação, o sofrimento e a perda. Uma ciência que é arte e por isso consegue situar na mesma equação dimensões tão dispares, que aparentemente não se misturam. Na verdade, estão misturadas completamente na própria vida: a protrombina e o desânimo, os neurotransmissores e o cansaço de viver, os hepatócitos e a indignação .
Este novo humanismo médico deve construir-se pautado pela harmonia, para saber tocar, com diferentes cordas, o acorde perfeito. Equilíbrio é optar por uma composição unitônica, ora ciência, ora arte um pouco de albumina, e medidas doses de afeto. Harmonia é colocar cada competência no seu lugar, ter alma de artista para saber tocar a harpa dos cuidados médicos, incorporar a polifonia com variedade de instrumentos, com silêncios e compassos de espera, na sinfonia de cada vida humana que nos é confiada. Estes são os acordes que permitem ao médico percorrer o caminho entre a pessoa doente e o significado que a doença tem para o paciente, já que a enfermidade é para o paciente um modo de estar na vida. Uma forma de vida que tem sua própria linguagem e deve encontrar no médico sensível, o receptor necessário para decodificar corretamente os significados. O novo humanismo médico é verdadeira antropologia ativa, e não simples especulação teórica. “Para o profissional da Medicina, humanismo e antropologia são possibilidades da sua auto exigência, desafios ao seu pensamento racional, níveis de conhecimento em aspiração ascendente de inconformismo”.
O novo humanismo médico permite ao profissional ocupar-se da pessoa doente “em todas as suas expectativas humanas. É bom nunca esquecer que são precisamente estas qualidades humanas que o doente aprecia no médico, além da competência profissional em sentido estreito. Ele quer ser visto com benevolência, não só examinado quer ser escutado, não só submetido a diagnoses sofisticadas quer sentir com segurança que está na mente e no coração do médico que o trata” .
O humanismo médico é fonte de conhecimento que o médico utiliza para melhor cuidar do ser humano que lhe é confiado. Caminhos diversos de conhecimento que encontram na pessoa do paciente o terreno comum de atuação, a unidade de missão. Um humanismo que vai além do equilíbrio que pretende compensar os excessos da técnica colocando na balança esporádicas atitudes humanitárias. Um humanismo que representa a harmonia do verdadeiro virtuosismo musical e não apenas de um apêndice cultural. Uma atitude científica, ponderada, resultado de um esforço consciente de aprendizado possuidor de metodologia consistente .
A proposta de um novo modelo de humanismo médico surge assim como uma possibilidade sustentável para humanizar a Medicina, porque moldaria o processo de formação do médico na mesma fonte acadêmica. E deste modo, poderia viabilizar-se esse modelo humanista que resulta da harmonia precisa que sabe combinar em perfeita sintonia a ciência de uma Medicina moderna, baseada em evidências, com a arte e os cuidados que implica entender o enfermo como pessoa, centrar-se no paciente e não apenas na doença que lhe acomete.