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Uma reflexão sobre a expressão “Escolha de Sofia” inserido no contexto da Saúde no País em tempos de pandemia.

Uma reflexão sobre a expressão “Escolha de Sofia” inserido no contexto da Saúde no País em tempos de pandemia.
Elaine Rorato
Apr. 28 - 15 min read
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Resumo:  O presente artigo, traz uma reflexão sobre o contexto da saúde no Brasil e as dificuldades enfrentadas por médicos e profissionais de saúde em razão de recursos finitos, no enfrentamento à pandemia causada pelo Coronavírus.

Palavras Chave: Escolha de Sofia. Pandemia. Coronavírus. Saúde Pública. Direito Médico. Bioética

Sumário: Introdução. 1. A expressão “Escolha de Sofia” no contexto da saúde no Brasil. 2. A relação do tratamento de pacientes com COVID-19 e Cuidados Paliativos. 3. COVID-19 e a Responsabilidade Bioética. Considerações Finais.

 

Introdução

O crescimento vertiginoso da pandemia no Brasil, nos leva a uma REFLEXÃO sobre a expressão “Escolha de Sofia”. Sofia Zawistowka, no célebre romance de Willian Styron (1979), foi obrigada por um sargento nazista a escolher, entre os seus dois filhinhos, quem iria sobreviver e quem iria morrer.

No contexto da saúde, a expressão “Escolha de Sofia”, está relacionado ao paciente que apresenta “maior chance de vida” em razão dos sintomas agravantes da Covid-19, doença causada pelo Coronavírus (SAR-S COV-2).

O vírus (SARS-COV2) surgiu na China no final de 2019. Inicialmente, parecia ser uma ameaça distante e separada por um enorme oceano, no entanto, como um tsunami, a doença que já se tornou uma ameaça global, e vem causando além de irreparáveis perdas humanas, um grande impacto na economia.

O COVID-19, (SARS-COV2) é uma doença virulenta, altamente contagiosa, de evolução rápida, que leva a uma sobrecarga do sistema de saúde. Acomete principalmente, pessoas consideradas vulneráveis (idosos, cardiopatas, diabéticos, imunossuprimidos e hipertensos) porém, os dados amplamente divulgados, revelam que apesar, de se apresentar mais agressiva em pessoas com idade avançada e comorbidades, a doença tem feito vítimas fatais em todas as faixas etárias.

 Embora médicos e cientistas do mundo inteiro estejam incansavelmente, dispensado enormes esforços em busca de uma vacina ou medicamento capaz de conter a disseminação da doença, até o momento, não há, nenhum estudo comprovado com resultados positivos na cura.

Como já era esperado, mesmo após ações de contingência e medidas de isolamento social, adotadas pelo Ministério da Saúde e Governos Estaduais, Instituições Públicas de atendimento à Saúde vem sofrendo grande impacto, já que, há anos sobrevivem com recursos finitos e precários.

 

1- A expressão “Escolha de Sofia” no contexto da saúde no Brasil

Na Itália, o aumento exponencial associado aos recursos limitados, (ausência de respiradores e leitos de UTI) levaram os profissionais de saúde a tomarem uma decisão polêmica conhecida pela expressão “escolha de Sofia”. A idade superior a 80 anos, e o índice de comorbidade de Charlson (que aponta quantas outras condições médicas o paciente tem) menor que 5´, foram os critérios de exclusão utilizados, no qual, pacientes jovens tiveram prioridade de atendimento à suporte avançado de vida em detrimento de idosos, considerados com menor chance de recuperação da doença.

A “difícil escolha” dos profissionais de saúde, causou uma enorme comoção mundial, e hoje essa possibilidade assombra os profissionais de saúde no Brasil, já que, a exemplo do que fatalmente aconteceu Itália, o sistema de Saúde Pública no Brasil, também se encontra sobrecarregado.

A Constituição Federal prevê em seu Art.196:

“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

No entanto, é cristalino que a saúde no Brasil, há muito tempo deixou de ser prioridade na destinação de recursos e investimentos em pesquisas pelo estado, e hoje sofre as consequências da má administração.

O isolamento social, despertou nos brasileiros a capacidade de se reinventar e de se adaptar as necessidades. Reinventaram o beijo via emoji, o abraço virtual, as lives com shows de música, mas, não há como reinventar a morte e o luto. A dor da perda é inevitável, podendo apenas ser amenizada com medidas de cuidados paliativos.

 Médicos e profissionais de saúde, antes treinados para cuidar e salvar vidas, vivem hoje uma sobrecarga de trabalho imensurável, assombrados com a possibilidade de serem obrigados a reservar os recursos disponíveis para aqueles que têm não apenas chance de sobreviver, mas também, viverão por mais tempo após serem salvos, em outras palavras, escolher a quem será dado a “chance de continuar a viver ou morrer”.

Mesmo que remota, a possibilidade de escolha não pode ser descartada, e o momento exige reflexão e união dos profissionais, afinal, é nos momentos difíceis que encontramos forças para nos reinventar e seguir em frente.

 

2 - A Relação do Tratamento de Pacientes com COVID-19 e Cuidados Paliativos

Os pacientes acometidos por covid-19 apresentam quadro sintomático que variam desde quadro de resfriado leve à Insuficiência Respiratória Grave, sendo esse, um dos principais sintomas da Covid-19, responsável pela saturação dos recursos em UTI, que vem criando um gargalo difícil de ser contido ante ao aumento exponencial de casos.

O País vive atualmente uma emergência sanitária inesperada e a curva de crescimento exponencial, de casos graves de COVID-19, tem saturado o Sistema de saúde pública beirando ao colapso.

Se todos os leitos de UTI disponíveis, vierem a ser utilizados para tratamento de casos de COVID-19, muito em breve, não haverá leitos disponíveis para tratamento de pacientes portadores de doenças crônicas e ou emergências em saúde.

Na pior das hipóteses, como escolher quem deverá ter prioridade ao suporte ventilatório e tratamento intensivo (UTI)?

Quando os Hospitais da Itália atingiram sua capacidade máxima de atendimento, foi necessário utilizar a idade como um dos critérios de escolha para determinar qual paciente receberia suporte ventilatório e cuidados intensivos em UTI. No Brasil, em tese, alicerçado em critérios bioéticos esse critério não poderia ser utilizado, por caracterizar ato discriminatório. Afinal, não se pode assegurar que um idoso de 70 anos sem qualquer comorbidade tenha menos chance de recupera-se de uma síndrome respiratória aguda que um jovem de 15 anos, cardiopata, asmático ou portador de doença renal crônica.

O supramencionado critério, além de contrariar preceitos Constitucionais, violariam o Estatuto do Idoso Lei 10.741/03, em especial em seu Art. 3o:

“É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária”.

Nesse contexto, insta destacar que a Constituição Federal alicerçada no princípio da Igualdade, veda qualquer tipo de discriminação como se extrai da leitura do artigo 3◦, IV e 5◦, CF:

Art. 3. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

IV- Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.

            Por mais drástico e cruel que pareça, quando houver um grande número de pacientes necessitando de suporte ventilatório e uma pessoa internada não responder positivamente a nenhum tratamento disponível, a decisão de colocá-lo, sob cuidados paliativos como medida digna, não poderá ser adiada.

A Organização Mundial da Saúde define como Cuidados Paliativos (2002):

 “A assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhora da qualidade de vida do paciente e de seus familiares diante de uma doença que ameace a vida, por meio de prevenção e do alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais”.

Nos Cuidados Paliativos preconiza-se o Princípio da Autonomia, que nada mais é, que um exercício de autoconhecimento, exposição de prioridades e desejos de vida digna. Cada indivíduo é único, e o que é bom para você pode não ser bom para um ente seu. Cabe a cada indivíduo escolher como deseja viver os últimos momentos de vida.

Nesse diapasão, a conduta médica encontra amaro no Art. XXII dos Princípios Fundamentais do Código de Ética Médica que prevê:

“Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção, todos os cuidados paliativos apropriados”

No contexto de cuidados paliativos e extubação paliativa, vale destacar que o princípio da autonomia do paciente, foi acolhido pela bioética e no entendimento do CFM, a recusa terapêutica por pacientes deve ser respeitado pelo médico, desde que ele informe ao paciente os riscos e as consequências previsíveis da sua decisão, podendo propor outro tratamento disponível.

Para o 1º vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Mauro Ribeiro:

 “Não tipifica infração ética de qualquer natureza, inclusive omissiva, o acolhimento, pelo médico, da recusa terapêutica prestada na forma prevista nesta Resolução, tampouco caracteriza a omissão de socorro prevista no Código Penal. O contrário: o tratamento forçado poderia caracterizar crime”

A relação dos cuidados paliativos no Covid-19, diz respeito às medidas adotadas no controle, alívio da dor e dos sintomas de desconforto respiratório, quando já esgotadas todas as opções terapêuticas disponíveis no tratamento da COVID-19.

Insta destacar que, a extubação de pacientes acometidos por Covid-19 não se confunde com extubação paliativa.

Pacientes acometidos por Covid-19, apresentam insuficiência respiratória aguda/grave, e sua extubação pode vir a ocorrer, nos casos em que, o paciente não apresentar resposta ao tratamento proposto. Já a extubação paliativa, consiste na retirada do respirador artificial de pacientes que apresentam quadro clínico irreversível, cujo objetivo, é deixar que uma doença crônica tenha sua evolução natural, com controle adequado de eventual quadro de dor e/ou desconforto respiratório, concedendo ao doente, uma morte digna.

No atual contexto de emergência sanitária, a “escolha” de qual paciente terá direito a um respirador/ suporte avançado de vida em UTI é reflexo de estrutura em saúde pública deficitária e despreparada para enfrentar uma pandemia de proporção mundial.

 

3- COVID-19 e a Responsabilidade Bioética.

Infelizmente, em tempos de pandemia a situação real está distante da ideal.

Médicos e profissionais de saúde, tem lutado bravamente contra um inimigo invisível, resistente, altamente contagioso, letal e com recursos materiais finitos.

 Nesse sentido, resta prejudicado o esforço e compromisso de fazer o melhor pelo paciente, como preconiza o Art. XXVI dos Princípios Fundamentais do Código de Ética Médica:

“A medicina será exercida com a utilização dos meios técnicos e científicos disponíveis que visem aos melhores resultados”.

Como agravante, verifica-se gradualmente, um aumento no número de profissionais de saúde fatalmente acometidos pela doença, em razão da falta de EPIs adequados e suficientes para o enfrentamento da doença.

O artigo IV do Código de Ética Médica, assegura ao médico o direito de:

“Recusar-se a exercer sua profissão e Instituição Pública ou privada onde as condições de trabalho não sejam dignas ou possam prejudicar a própria saúde ou a do paciente, bem como a dos demais profissionais. Nesse caso, comunicará com justificativa e maior brevidade sua decisão ao diretor técnico, ao Conselho Regional de Medicina de sua jurisdição e à Comissão de Ética da instituição, quando houver”.

Cumpre destacar, que os demais conselhos de classe de profissionais de Saúde, comungam do mesmo entendimento acerca dos direitos no exercício profissional.

No entanto, mesmo diante da falta de EPIs e estrutura, não se tem qualquer notícia de que profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas) tenham abandonado seu posto deixando pacientes a própria sorte, fato que só vem a demonstrar o alto grau de comprometimento desses profissionais com a população e sua integral observância à preceitos morais, éticos e pátrio.

Assim, não há que se falar em responsabilidade bioética aos médicos e profissionais de saúde, uma vez que dependem de recursos materiais, estruturais e de ações de contingencia estatal para prestar os serviços de saúde adequado à população.

 

Considerações finais

Em tempos de pandemia, em que se discute a possibilidade da tomada de decisões muitas vezes difíceis e radicais, se faz necessário considerar que essas decisões já fazem parte do nosso dia a dia, mesmo antes da pandemia, estando apenas inseridas em contextos e dimensões diferentes. Exemplo:

a) estrutura física precária, falta de medicamentos e insumos, falta de leitos de UTI sempre foram alvo de judicialização na saúde, para escolha de quem deveria ou não ser beneficiado com a ação/intervenção;

b) antes da pandemia, já havia triagem de atendimento e critérios de prioridade de leitos de UTI;

c) mesmo diante das inúmeras adversidades e da gravidade da doença, milhares de profissionais de saúde, escolheram permanecer na linha de frente, arriscando a própria vida, no cumprimento de uma obrigação pátria, ao prestar atendimento as vítimas da doença;

d) em ações de família, um juiz que é um terceiro desconhecido da relação, muitas vezes se vê obrigado a escolher, qual familiar tem direito de guarda de um menor;

Ou seja, passamos a vida fazendo escolhas difíceis ou decidindo por outrem sem se dar conta da dimensão da responsabilidade.

A questão inquietante no atual contexto de pandemia é:

Bastará adotar uma visão racional para tomada de decisões em massa sobre a vida de outrem, mesmo que, esse seja um ente próximo?

Em tempos difíceis, é preciso aprender a acolher e sorrir com os olhos, abrir o coração e mudar as prioridades, ter empatia (se colocar no lugar do outro), valorizar gestos simples e acima de tudo, agradecer.

Termino essa reflexão, com a frase do Dr. Cláudio Nazareno, Médico Cardiologista, e Coordenador do serviço de Pronto Atendimento do HCOR:

O cenário ideal para médicos e profissionais de saúde dentro do contexto de pandemia, é que haja fortalecimento do Sistema Público de Saúde, para que, possam trabalhar em ambiente seguro com menor risco de contaminação possível, sendo capazes de promover uma prestação de serviços de saúde digna e igualitária à toda população. Toda vida importa, por isso a melhor escolha é não precisar escolher”.

 

Bibliografia:

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resol.2.232/19. Disponível em: [https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2019/2232]. Acesso em: 23/04/2020.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Norma ética 20/09/2019. Disponível em: [http://portalfmb.org.br/2019/09/20/cfm-fixa-norma-etica-para-recusa-terapeutica-por-pacientes-e-objecao-de-consciencia-na-relacao-medico-paciente/]. Acesso em: 22/04/20

DADALTO, Luciana. Testamento Vital. 5. ed. São Paulo: Foco,2020.

DANTAS, Eduardo; Coltri, Marcos. Comentários ao Código de Ética Médica. 3. ed. São Paulo: Jus PODIVM, 2020.

ESTATUTO DO ISOSO. LEI 10.741/03. Disponível em:[ http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm]. Acesso em: 23/04/2020.

CORONAVÍRUS: Médicos podem ter de fazer “escolha de Sofia” por quem vai viver na Itália. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51864814. Acesso em: 23/04/2010

 


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